Era uma vez...
Uma garota, magrinha de dar dó, cabelos lisíssimos e castanhos, dourados na luz, e olhos igualmente brilhantes. Vivia no mato, menina-bicho. Desenhando nas árvores e no barro, construindo casas e mandando em servos imaginários, lendo pilhas de livros, preenchendo a cabeça com essas ilusões que são distribuídas por aí, e que dão gosto de relembrar. Não tinha amigos, pelo menos não amigos físicos, só os dos livros, que pra ela eram muito melhores, mais interessantes e coloridamente alegres! Não usava óculos, mas pelas suas roupas largas, rabo-de-cavalo e ausência constante de compania, via-se que era daquelas que nunca esquecia de fazer a tarefa da aula, e que nunca tirava menos de 10. Essa garotinha foi crescendo, batendo em quem batia na sua irmãzinha, inventando namoradinhos, tentando escutar as músicas que todos ouviam, tentando ser menos bicho.
De tanto empurrar e tentar, ela conseguiu. Um pouco. E já não era mais garotinha, era garota crescida. Tinha medo de sair sem casaco, pois seus seios ainda não tinham crescido, ao contrário de todas as outras garotas da sua idade. Também não tinha dado seu primeiro beijo ainda, ao contrário de todas as outras garotas da sua idade. E não tinha corpo de garota ainda, continuava magrinha de dar dó. Mas como em todos os casos sempre conhecemos um salvador (ou pelo menos assim pensamos), num dia de sol empoeirado, uma vizinha nova chegou. Morena bonita, mais nova do que a garotinha (vamos chamá-la de Cora), e mesmo assim mais experiente, tinha corpo bonito, de mulher, e já tinha feito tudo o que Cora invejava e não tinha coragem de fazer. Foi a vizinha nova que colocou Cora no caminho errado, mas não podemos culpá-la, afinal foi Cora quem resolveu segui-la como um discípulo segue a seu mestre.
Depois de fazer muita besteira, estragar muito a sua imagem perante os seus amigos dos livros, e envergonhar muito a seus pais, Cora arranjou um namorado. E largou a vida que aprendeu com a vizinha morena, para aprender a ser uma boa companheira. E foi boa demais. Tão boa, que implorava pra não ficar sozinha, sempre que seu namorada a trocava por um final de semana de festa e outras garotas. Cora segurou firme por 3 anos, por achar que não iria ser aceita novamente pela sociedade. Cora é muito burra, só pensa em agradar e ser aceita. Cora é muito burra. E ingênua. E burra.
Depois de 3 anos, seu namorado foi se cansando dela, era muito sem sal, sem bunda, sem peito, sem voz, sem ritmo, sem nada que o atraísse. E que bom que assim foi, pois no final, Cora já lia novamente, e muito, voltou a ter bons amigos nos livros, escutava música boa (escondida, pois ninguém podia saber que se rebelava internamente), e conheceu uma pessoa tão solitária e até mais revoltada do que ela. Mas como Cora ainda estava tentando ser uma boa companheira, essa pessoa (vamos chamá-lo de Lovat) foi colocada no posto de melhor amigo! Cora ficou encantada com Lovat, e no início, ele era meio desconfiado com ela, não dava muita conversa, olhava com cara de deboche (pobre Lovat). Depois de muita conversa, as coisas foram ficando melhores entre eles. E Cora até sonhava com as conversas suas com Lovat, eram boas, além de compartilharem boa música, bons livros, boas séries.
Tudo isso influenciou no término de seu namoro: seus amigos de livros (e todos os outros amigos, família, cachorros, galinhas...) não gostavam do seu namorado atual, Cora estava em um estágio muito diferente de seu companheiro, ela tinha perspectivas maiores, sonhos mais altos, culturas, músicas, palavras, tudo diferente. Não tinha mais como continuar. E no final de tudo, com um tapa foi enterrado o seu primeiro e trágico namoro.
Depois disso, Cora prometeu que nunca mais deixaria ninguém esmagar seus sonhos, suas vontades, ninguém (ela gritou) vai impedi-la de ser feliz! E assim foi, por um bom tempo. Ela subia morros, visitava cachoeiras, cavava buracos e enterrava promessas, fez muitas e preciosas amizades, foi a festas inéditas, se divertiu com sua família pela primeira vez em muuuito tempo, e apesar de ser sozinha, nunca foi tão plenamente feliz e livre em sua vida toda.
O que ela mais gostava de fazer era pegar a sua bicicleta num dia bem quente, sair e ficar andando, perambulando pelos bairros mais verdes, sentindo o vento no rosto, vento frio e penetrante, se cravando nos seus ombros e peitos, penetrando em sua alma de um jeito que ninguém mais conseguiria. O vento agora era seu amante, e ele a fazia realmente feliz. Tão feliz, ela abria os braços e ia contra o vento, enfrentando e sentindo aquela energia revigoradora a possuindo, e chorava. De alegria, de libertação, de amadurecimento. Tudo aquilo era um sonho, surreal, a felicidade que ela sentia transbordava de seus olhos, cabelos e garganta!
Ela podia escutar no volume mais alto suas músicas mais loucas, ela aprendeu a gostar de músicas diferentes, descobriu tanta coisa maravilhosa, incluindo a música clássica. Ela sentia suas raízes se chacoalhando, pedindo e implorando pra que ela voltasse a correr atrás dos seus sonhos, de ser reconhecida, de não trabalhar (afinal, quem faz o que ama, não trabalha um dia sequer!)...
Cora lembrou-se de alguém muito importante, num certo dia. E apenas deste pensamento (pois eles são muito fortes, os pensamentos) esta pessoa começou a surgir. Sim, Lovat! Saíram pra conversar, pra ver as estrelas do alto do morro, pra dançar, pra beber, pra namorar, pra compartilhar o mundo que eles tanto tinham em comum. Cora sentia uma certa inveja de Lovat (aquele playboyzinho criado à leite com pêra), pois ele sabia jogar, tinha muitos livros bons, e escondia dela a sua verdadeira essência. Até este ponto, Cora nunca tinha ficado com vontade de abrir uma pessoa pra ver o que havia dentro dela. Até este ponto. Talvez por Cora ser sempre tão aberta sobre tudo nela, o fato de Lovat ser tão fechado a intrigava. A instigava. A convidava a ir em frente. E ela foi! Ah, e quanta coisa ela descobriu! Ficou encantada, e ao mesmo tempo tomada de uma alegria sombria. Sim, Lovat despertava instintos sombrios na nossa garotinha, ao mesmo tempo em que ela apenas queria abraçá-lo e confortá-lo, ela queria mordê-lo, amassá-lo, segurá-lo nas mãos e sentir o poder de tê-lo dentro de si. Cora estava decidida a ir em frente e dar à Lovat o melhor de si. E assim foi, ou quase. Um pouco de bebida a mais atrapalhou um pouco a sua entrada triunfal, mas ela ficou orgulhosa de si mesma, afinal, aquilo à rendeu uma honrosa declaração: "You Shook Me All Night Long"...
Num certo dia, dia esse que tinha tudo para ser definitivo, foram à uma festa. Maldito Lovat, tão romântico (internamente, só) e amoroso, havia reservado sua noite para ser apenas dela, e a pobre Cora, ingênua e não sabendo de nada, acabou levando-os para outro caminho. No final da noite e da festa, os dois decidiram ir ver as estrelas de novo, afinal a noite estava linda, e Cora estava particularmente feliz com a sua nova vida, e com seu novo parceiro. Mas alguma força contrária foi capaz de arruinar o que era pra ter sido perfeito. Um morro particularmente difícil de subir, um motorista particularmente inexperiente, cabeças embriagadas, uma troca de marcha mal calculada, uma traseira particularmente leve, um grito, e depois mais outro. Quando se deram conta, estava tudo girando, batendo, arranhando, machucando, e numa parada repentina Cora estava no chão, sem ar, sangrando. Tentando gritar por Lovat, por ajuda, por sua vida. Quando recuperou o seu ar, na primeira tragada de ar ela sentiu as dores que não deveriam estar ali. Cacos nos seus pés, mato nos seus cabelos, dinheiro espalhado por tudo, e como uma luz repentina, apareceu um rosto conhecido, procurando por ela, lhe ajudando a levantar, lhe devolvendo as esperanças da vida. Choraram desesperadamente, era algo que não deveria ter acontecido. Lovat foi pedir ajuda. Mas Cora estava em estado histérico, estava desesperada, e não conseguiu esperar, pois a força contrária se apoderou dela, do seu medo, do seu desespero, e tornou tudo ainda pior do que era. Decidida que era, Cora saiu de onde estava, andou no meio do mato, batendo sua perna já machucada em troncos e pedras, afundando ainda mais os cacos de vidro debaixo dos seus pés. Mas não desistiu, de alguma forma ela tinha que salvar a si mesma, pois aprendera a não contar mais com os outros. Subiu o morro, e desesperadamente começou a gritar por Lovat, deitou-se, dolorida que estava, e começou a tentar respirar mais tranquilamente, pois a respiração forte fazia com que a sua costela doesse ainda mais. Até que seu rosto salvador apareceu novamente, segurando-a, confortando-a, cuidando dela como ela nunca havia sido cuidada. E por um momento ela sentiu como se algo aumentasse dentro dela, na mesma medida em que outra coisa (vai saber o que) diminuía em ritmo acelerado.
Depois de sair do hospital, já sem dor, mas ainda chocada, recebeu exatamente aquilo que precisava, o afeto e carinho de seus criadores, seus mestres, seus pais. Ficou um tempo na casa de seus pais, e a cada dia que lá se passava, mais coisas lhe passavam na cabeça.
Cora estava perdendo tempo, esperando pra tomar decisões, esperando pra viver depois, esperando pra ver no que dá. Ela estava errada. Cora tinha que começar a viver, antes que fosse tarde demais. Chorava todo dia, pensando no que havia acontecido. Constantemente se pegava sonhando com seu enterro, ou que estava se acidentando novamente. Constantemente seus pensamentos eram invadidos pela sensação de medo e desespero novamente. Até que começaram a aparecer alguns rostos conhecidos em seu solitário quarto. Lhe ajudando, lhe consolando, lhe aconselhando, tentando fazê-la se sentir melhor.
Ela merecia uma chanca, ELE merecia uma chance. Cora agora tinha assumido publicamente que estava namorando com Lovat. Um namoro sério, daqueles fofíssimos onde você o apresenta pra sua família, e divide o fone, as músicas, o sono, a conversa, as implicâncias, os bancos de ônibus. Mas infelizmente parece que o que havia diminuído em Cora a estava prejudicando. Ou talvez ela não estivesse preparada ainda. Não estava nada normal, nada era natural, nem seus movimentos, nem suas palavras, nem seu amor. Algo a estava fazendo mal, alguém tinha espalhado veneno em seu ar, a angústia esmagava seus pulmões de um jeito que a deixava extremamente desconfortável. E para evitar uma morte prematura, Cora pediu um tempo a Lovat. Não que ele tivesse feito algo de errado a ela, ele nunca fez. Ao contrário, eram perfeitos juntos. Todo mundo dizia. TODO MUNDO! Mas Cora parecia danificada, estragada, ela não sabia dar amor, não sabia cuidar. Alguma coisa dentro dela havia se perdido totalmente. Ou quase.
E aqui termina uma primeira parte da vida de Cora. Assim que ela me contar mais sobre sua vida, continuarei contando aqui, pois Cora está em uma fase de transição, e antes de escrevê-la aqui, preciso saber como as coisas vão com ela. Depois de uma boa conversa com Cora, eu volto. Logo. Antes de você imaginar, meu pequeno cantinho feio e velho. <3
Nenhum comentário:
Postar um comentário